O Touro através da Mitologia e a História
Numa várzea sobre que soluçava o mar, apascentava Europa a sua boiada branca. Ao sol eram de noite os seus cabelos, ao luar eram sóis os seus olhos.
Dum pastor das manadas reais ouvia rezas de amor e para ali vivia contente com o seu ingénuo menestrel e os seus santos boisinhos. Uma tarde deu no rebanho com a cabeça a mais. Cor de espuma, nédio como um veludo, do rei à certa o toiro tresmalhado.
Tinha no olhar negruras insondáveis, duma melancolia tamanha que enterneceu a fenícia. Pô-lo a comer no regaço e desfolhou sobre ele grinaldas do prado.
O toiro mugia, requebrava-se numas denguices tais, que deram ousio à pastora para lhe saltar em riba.
Toiro – agora o vereis. Bota-se à água e lá vai nadando, nadando, depositar o precioso fardo sob um laranjal florido de além mar.
Quando cobrou os sentidos viu-se nos braços de um moço mais mavioso que a frauta do pegureiro. A pastorinha caíra na esparrela do D. Juan do Olimpo.
Esta incarnação de Júpiter endeusou o toiro. A crença ergueu-lhe áureos tabernáculos, e a arte topou o símbolo ansiado da formosura viril, da energia reprodutora.
Os bronzes helitas são o missal deste culto idólatra à magestade imponente do toiro. Do duelo prolongado entre o homem e o boi selvagem formou-se um ciclo lendário, com Teseo, o seu rei Artur. Centauros talavam como avalanches regiões inteiras, semideuses velavam armas e saíam a abarbar os monstros.
No Alto Nilo os Remsés amatilhavam toiros e pelos anfiteatros de Roma o seu mugido vibrou como um clarim raivoso.
A Idade Média com seu génio bulhento, a índole de quem germinou no ventre de Messalina, fecundada por um gladiador, coligia todos estes esboços de luta, e quando já não tinha moirama para alcançar criou o toireio, a arte de ser valente, de ser gentil, de ser sanguinário.
Os barões goliardos já não tinham as canas, as alcanzias, os torneios, com que recrear as damas e ganhar-lhes o coração?
O homem das primeiras idades ataca o toiro com a rena, o mamute, por instinto de conservação; o homem histórico fá-lo a rês predilecta das suas montarias; o homem culto cria a arte dos cambapés e da audácia para negacear a força impávida. O machado de sílex, a flecha e o laço, o estoque e o rojão.
A fidalguia aborrecida das peloiradas na África, e de gandaiar por esses mundos de Cristo, atirou-se a esta nova fórmula da galantaria e do denodo.
Era uma justa de valentias, uma Terra Santa de glórias em que se praticavam façanhas e se grangeavam nomes e mulheres.
O Cid, Carlos V, Pepino, o Breve, D. Sebastião, ganharam renome de lidadores.
A Idade Média das banzas enamoradas, das távolas, dos paladinos galhardos, não podia ver bocejar a boca vermelha das mulheres. Vieram pois as toiradas com o sangue a espadanar, a vida vacilando na cornadura das feras, a coragem pairando do alto dum sorriso sereno. É esta a fase mais brilhante do toireio, fidalguesco, privilegiado, a que a plebe era completamente admitida para claque.
A Península era chão fértil para o toireio. Como um espirilo assim ele invadiu a vida ibérica, empedernindo-lhe o temperamento nas gradações rubras do tradicionalismo, da cólera, do amor, dos sentimentos todos.
Os Amadis, os Quixotes, para serem completos, deviam ser toireiros. Os dois povos, quando citam os heróis, não se esquecem de Frascuelo e do marquês de Marialva.
Toirear era uma imposição das fidalguias, como ir à Terra Santa fora um dever de consciência religiosa.
Para os nobiliários foi um capítulo a mais. Dessa guerra brilhante ao toiro ressalta o conde de Villamediana.
Filho de português e andaluza, era tão temível a sua língua como a sua espada.
A matar toiros, a matar homens, a conquistar mulheres, era sempre o mesmo homem de punhos de renda imaculáveis, de eterno e imperturbável sorriso à flor do rosto.
Semeava dobrões às rebatinhas, e a fecundidade do seu espírito provocava os louvores de Cervantes. Quando passava, dizia o povo:
- Lá vai o conde!
O povo quando aponta, admira; Villamediana era um ídolo.
As suas aspirações voaram tão alto que chegaram à alcova de Isabel de Bourbon, mulher de Filipe IV. A rainha Isabel era uma francesa e uma francesa tributa-se a tudo o que é grande, que está acima.
Para o conde não existia impossível, conduzindo-se sempre na linha recta das suas paixões.
Gostava de uma mulher, havia de tê-la, conquistasse-a embora a madrigais ou à ponta de espada.
Os homens assim davam-lhe as esposas, como as Sabás se davam ao padreador Salomão.
A sua impetuosidade chegava às vezes a ser imprudente, mas sem baixar das alturas incomensuráveis do cavalheirismo.
Um dia representava-se no paço uma comédia sua. A rainha, perdida e achada por teatros, era a protagonista. A uma certa altura, a rainha baixava no palco, alada, silfidicamente, de um nevoeiro de cassa.
Villamediana então largou o fogo às bambinelas, e o maquinismo incendiou-se; pânico geral. Só o conde teve cabeça para salvar a soberana, fugir com ela, quase nua, desmaiada, para um dos extremos do Alcácer. Na arena era aclamado como um herói dos Méxicos.
Um dia solenizava-se em Madrid o nascimento duma infanta. Um programa variado e a infalível toirada.
A Plaza Mayor regorgitava.
Das balaustradas, dos telhados, das varandas debruçavam-se cachos enormes de gente. Sobre colgaduras que o sol brunia, a corte, os punhos dos espadins e as jóias cintilando como raios prisioneiros.
Pelo azul alava-se a nuvem sussurrante, o fumo do sangue espanhol, ansioso por sangue, valentia, gentilezas.
O espectáculo abriu com o duelo de um tigre com um toiro. Depois os peões e bandarilheiros entraram na arena, as cores do trajo, descantando-se ao poente.
Os guisos dos corcéis emudeceram e o cornúpeto entrou. Entrou fungante, vibrando como um vime, as vértebras a zebrarem a epiderme nédia das lezírias.
Peões e bandarilheiros desertaram acossados. O animal era um demónio vivo, saltos de tigre e ímpeto de leão.
O sangue espanhol, de impotência, tinha apoplexias. Mas Villamediana rompe na praça, sumptuoso, grande como um deus. O seu trajo era dum arrojo incrível e um madrigal espirituoso à rainha. Justilho, capa, chapéu, vinham recamados de reales, dos reales com a efígie de D. Isabel, e sobre o tiracolo sanguíneo lia-se a divisa doirada: mis amores son reales.
Na balaustrada em que escorriam damascos passou o galvanismo do assombro: a rainha corara muito, o coração em grandes palpitações como se quisesse saltar fora.
Semeava dobrões às rebatinhas, e a fecundidade do seu espírito provocava os louvores de Cervantes. Quando passava, dizia o povo:
- Lá vai o conde!
O povo quando aponta, admira; Villamediana era um ídolo.
As suas aspirações voaram tão alto que chegaram à alcova de Isabel de Bourbon, mulher de Filipe IV. A rainha Isabel era uma francesa e uma francesa tributa-se a tudo o que é grande, que está acima.
Para o conde não existia impossível, conduzindo-se sempre na linha recta das suas paixões.
Gostava de uma mulher, havia de tê-la, conquistasse-a embora a madrigais ou à ponta de espada.
Os homens assim davam-lhe as esposas, como as Sabás se davam ao padreador Salomão.
A sua impetuosidade chegava às vezes a ser imprudente, mas sem baixar das alturas incomensuráveis do cavalheirismo.
Um dia representava-se no paço uma comédia sua. A rainha, perdida e achada por teatros, era a protagonista. A uma certa altura, a rainha baixava no palco, alada, silfidicamente, de um nevoeiro de cassa.
Villamediana então largou o fogo às bambinelas, e o maquinismo incendiou-se; pânico geral. Só o conde teve cabeça para salvar a soberana, fugir com ela, quase nua, desmaiada, para um dos extremos do Alcácer. Na arena era aclamado como um herói dos Méxicos.
Um dia solenizava-se em Madrid o nascimento duma infanta. Um programa variado e a infalível toirada.
A Plaza Mayor regorgitava.
Das balaustradas, dos telhados, das varandas debruçavam-se cachos enormes de gente. Sobre colgaduras que o sol brunia, a corte, os punhos dos espadins e as jóias cintilando como raios prisioneiros.
Pelo azul alava-se a nuvem sussurrante, o fumo do sangue espanhol, ansioso por sangue, valentia, gentilezas.
O espectáculo abriu com o duelo de um tigre com um toiro. Depois os peões e bandarilheiros entraram na arena, as cores do trajo, descantando-se ao poente.
Os guisos dos corcéis emudeceram e o cornúpeto entrou. Entrou fungante, vibrando como um vime, as vértebras a zebrarem a epiderme nédia das lezírias.
Peões e bandarilheiros desertaram acossados. O animal era um demónio vivo, saltos de tigre e ímpeto de leão.
O sangue espanhol, de impotência, tinha apoplexias. Mas Villamediana rompe na praça, sumptuoso, grande como um deus. O seu trajo era dum arrojo incrível e um madrigal espirituoso à rainha. Justilho, capa, chapéu, vinham recamados de reales, dos reales com a efígie de D. Isabel, e sobre o tiracolo sanguíneo lia-se a divisa doirada: mis amores son reales.
Na balaustrada em que escorriam damascos passou o galvanismo do assombro: a rainha corara muito, o coração em grandes palpitações como se quisesse saltar fora.
O toiro investiu: Villamediana esperou-o a pé firme e numa lançada inconcebível deitou-o a terra.
Na manhã seguinte, pagavam-lhe a estocada em beijos, os últimos daquele céu aberto, perdido à noite, sob o punhal anónimo das trevas.
Villamediana é dessa plêiade doida, quixotesca ainda, perversa por atavio, em que cavalheirescamente alternavam o espadim e o rojão. A par deste, só o marquês de Niza.
No começo do século XIX, a capital era uma matrona muito recatada, que só de bioco punha pés na rua, digeria trintários como uma leoa, e espreitava dos ralos verdes o corso das peraltas.
Uma manhã, ruminava ela Chiado abaixo, a missa de S. Roque, quando um taful, cruzando, lhe beliscou audaciosamente a carnosidade do braço.
Os magriços saíram à barra: o libertino abriu duas sepulturas e deformou para todo o sempre um quinteto de focinhos.
A Távora encolheu as unhas, e o bonifrate passou, terrífico, flamante, como um demónio de barrete encarnado.
A honesta matrona benzeu-se lá no fundo das gelosias, considerando, para ela e para com Deus, que o estúrdio dava um galhardo pagem, para na penumbra das igrejas lhe tomar das mãos o marfíneo livro das Horas.
Um nome andava de boca em boca: marquês de Niza. Nome que trazia aliada à magia dos encantos perversos a aversão das irreverências desbocadas.
O marquês era um gentilhomem de raça e de espírito, que floreava ao pé de Garrett e era querido das viscondessinhas como um felino de grandes ternuras e perigosas garras.
Espartilhava-se, tinha ademanes de cornaca de homens, e ia pelos braços das mulheres fáceis aos Te-Deum da Sé.
Uma praga de Voltaires, alagando Lisboa, não causariam o terror sagrado da Sociedade do delírio, de que ele era o regente.
Os botequins ficaram assinalados desta horda de valdevinos, com mão larga para dissipar e fazer tudo em cacos na nevrose final da estroinice.
As cortesãs nadavam num Nilo de abundâncias, com lacaios solertes, sedas preciosas, dinheiro em barda.
O marquês era o rei da boémia. As suas fantasias envergonhavam as de Heliogábalo.
Uma noite entrou no Price, trajado de mulher, pelo braço de uma rameira travestida de homem.
Banhava-se em Champagne, e conta-se que uma vez ferrara a prata o ginete de passeio.
Valente calção, rebentava pelas lezírias cavalos à rédea solta, e nas arenas brincara com a pêra, com o garbo e a graça serena que os salões lhe conheciam. Numa corrida em Alhandra, lidou um boi com punhais malaios nas hastes: afocinharam dois corcéis, a vitória por fim poisou-lhe no rojão.
No começo do século XIX, a capital era uma matrona muito recatada, que só de bioco punha pés na rua, digeria trintários como uma leoa, e espreitava dos ralos verdes o corso das peraltas.
Uma manhã, ruminava ela Chiado abaixo, a missa de S. Roque, quando um taful, cruzando, lhe beliscou audaciosamente a carnosidade do braço.
Os magriços saíram à barra: o libertino abriu duas sepulturas e deformou para todo o sempre um quinteto de focinhos.
A Távora encolheu as unhas, e o bonifrate passou, terrífico, flamante, como um demónio de barrete encarnado.
A honesta matrona benzeu-se lá no fundo das gelosias, considerando, para ela e para com Deus, que o estúrdio dava um galhardo pagem, para na penumbra das igrejas lhe tomar das mãos o marfíneo livro das Horas.
Um nome andava de boca em boca: marquês de Niza. Nome que trazia aliada à magia dos encantos perversos a aversão das irreverências desbocadas.
O marquês era um gentilhomem de raça e de espírito, que floreava ao pé de Garrett e era querido das viscondessinhas como um felino de grandes ternuras e perigosas garras.
Espartilhava-se, tinha ademanes de cornaca de homens, e ia pelos braços das mulheres fáceis aos Te-Deum da Sé.
Uma praga de Voltaires, alagando Lisboa, não causariam o terror sagrado da Sociedade do delírio, de que ele era o regente.
Os botequins ficaram assinalados desta horda de valdevinos, com mão larga para dissipar e fazer tudo em cacos na nevrose final da estroinice.
As cortesãs nadavam num Nilo de abundâncias, com lacaios solertes, sedas preciosas, dinheiro em barda.
O marquês era o rei da boémia. As suas fantasias envergonhavam as de Heliogábalo.
Uma noite entrou no Price, trajado de mulher, pelo braço de uma rameira travestida de homem.
Banhava-se em Champagne, e conta-se que uma vez ferrara a prata o ginete de passeio.
Valente calção, rebentava pelas lezírias cavalos à rédea solta, e nas arenas brincara com a pêra, com o garbo e a graça serena que os salões lhe conheciam. Numa corrida em Alhandra, lidou um boi com punhais malaios nas hastes: afocinharam dois corcéis, a vitória por fim poisou-lhe no rojão.
Devia ter morrido, com um evohé! na garganta e uma Berenice ao lado, ingerindo lumes prontos.
O toireio profissionalisa-se. A corrida de toiros tornara-se uma necessidade e o pulso patrício cansara.
Na Espanha, a arte da gineta cai sob a inovação da vara larga empunhada pelo magarefe e o latagão das lezírias, restando um espectáculo picaresco de matadouro.
O toireio profissionalisa-se. A corrida de toiros tornara-se uma necessidade e o pulso patrício cansara.
Na Espanha, a arte da gineta cai sob a inovação da vara larga empunhada pelo magarefe e o latagão das lezírias, restando um espectáculo picaresco de matadouro.
Os aventureiros chovem na arena, escalando honrarias até abancarem no Senado e fitarem de frente olhos de princesas.
E vê-se essa Espanha, lindamente selvagem, acorrer às Puertas del Sol cobrir de vivas – vivas! – o cadáver escornado de Espartero, e não tirar o chapéu ao féretro de Castellar, uma das maiores celebrações modernas.
Pepe-Hilo está à frente desta arte, gananciosa, temerária, de cartel.
De operário guindou-se a magnate, tendo à farta duros, mulheres e palmas.
Pepe-Hilo está à frente desta arte, gananciosa, temerária, de cartel.
De operário guindou-se a magnate, tendo à farta duros, mulheres e palmas.
As manolas morriam por ele, e senhoras nobres por ele jogaram o pugilato, em plenas ruas de Madrid. O príncipe da Paz dava-lhe ufanamente o braço.
Ser amante de Pepe, era uma honra que os maridos desfraldavam.
Uma estocada falha a vuelapie, cravou-o nas hastes do boi. Pepe foi endereçado ao céu pela extrema-unção de um cura que chorava como uma vide.
Deixou no seu rol épico, umas setecentas mortes de toiros, não sei quantos duelos e cerca de trinta suicídios de muchachas.
Quando Guerrita anunciou que ia cortar a coleta, o céu azul de Espanha denegriu-se, as almas vestiram luto das calamidades públicas, enormes.
Este toireiro era o rei das calles.
Ser amante de Pepe, era uma honra que os maridos desfraldavam.
Uma estocada falha a vuelapie, cravou-o nas hastes do boi. Pepe foi endereçado ao céu pela extrema-unção de um cura que chorava como uma vide.
Deixou no seu rol épico, umas setecentas mortes de toiros, não sei quantos duelos e cerca de trinta suicídios de muchachas.
Quando Guerrita anunciou que ia cortar a coleta, o céu azul de Espanha denegriu-se, as almas vestiram luto das calamidades públicas, enormes.
Este toireiro era o rei das calles.
AQUILINO RIBEIRO
in ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA – 16/XI/1908
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